EDIÇÃO EXTRA: Tentar ser mulher em um universo que não foi feito para elas
As mulheres trans na indústria dos super-heróis
Nesta “edição extra” teremos algo diferente: um texto longo ao estilo daqueles que publico no LiteraturaRS. Se vocês curtirem esse formato, me avisem, que providencio mais. E se estão cansados do formato reviews, também me deixem saber. Dicas para melhorar este espaço serão sempre bem-vindas, desde que feitas com respeito.
Tentar ser mulher em um universo que não foi feito para elas
Chegou às bancas o primeiro encadernado da Patrulha do Destino escrito por Rachel Pollack, uma continuidade da fase de Grant Morrison, que revolucionou o título. Mas nem todos conhecem Rachel Pollack. Muito provavelmente porque ela foi uma mulher trans numa indústria comandada por e feita para homens. Pollack não era apenas uma roteirista e escritora conceituada, mas uma das maiores autoridades em Tarô dos Estados Unidos. Rachel Pollack faleceu em 2015 vítima de um câncer linfático e, até dois anos atrás não tinha seu trabalho disponível nem em arquivos digitais e nem em encadernados, apesar de ter o seu trabalho muito elogiado. Talvez por Rachel ter uma disposição mística na sua vida, ela fazia análises sobre a condição trans, apresentando constatações como “a mulher transe-sexual [sic] sacrifica sua identidade social como homem, sua história pessoal e, finalmente, a própria forma de seu corpo a um conhecimento, um desejo, que supera toda compreensão e prova racional”.
Talvez “sacrifício”, não em sua dimensão mística, mas em sua versão carnal, dolorida e sofrida, algo que pode superar qualquer lógica dominadora e hegemônica, seja a palavra que comece a tangenciar uma explicação de como é ser uma mulher trans em uma indústria dominada por homens. Além disso, muitos homens que fazem parte dessa indústria se revelam mais vis dentro dessa própria indústria, principalmente com mulheres. É o caso de Neil Gaiman (Sandman), Warren Ellis (Cavaleiro da Lua), Brian Wood (Conan), Eddie Berganza (Superman), Cameron Stewart (Batman), Nathan Edmondson (Justiceiro), Scott Allie (Hellboy), e tantos outros com histórias chocantes como a que acabou com a morte de Ed Piskor (X-Men: Grand Design). Essas histórias escabrosas não vêm de hoje, basta se aprofundar um pouco mais sobre como o celebrado editor revolucionário Julius Schwartz, co-criador do Flash e Lanterna Verde da Era de Prata, tratava as mulheres. O machismo e a misoginia estão junto da indústria dos comics desde que a DC Comics e a Marvel foram fundadas sobre antigas editoras dos famigerados “spicy pulps”. Nessa indústria tóxica tem se percebido que não é apenas difícil ser mulher, mas que ser mulher e trabalhar com comics pode ser mais arriscado do que ser “apenas” mulher. Ser uma mulher trans nos comics de super-heróis pode ser ainda mais perigoso.
Preciso evocar aquela frase desgastada e batida de Simone de Beauvoir em que ela diz que “não se nasce mulher, se torna mulher”. Mas quem, em sã consciência, quer se tornar mulher em um universo profissional dominado por homens tóxicos, arrogantes, que acreditam que, por serem homens e famosos ou poderosos, podem fazer com os outros o que bem desejam, inferiorizando-os por isso ou aquilo.
A antropóloga argentina Rita Segato afirma que os homens não tratam as mulheres como objetos porque podem, mas porque devem. Segato propõe uma teoria de que os homens estupram as mulheres ou àqueles que consideram femininos (e junto com estupro poderíamos incluir outros tipos de assédio sexual ou moral, incluindo assédios virtuais) porque esse é um espetáculo que eles precisam proporcionar para outros homens para se afirmarem como o macho da espécie. Lendo os relatos sobre os assédios promovidos por homens da indústria dos quadrinhos, percebemos que essa teoria faz muito sentido. A virilidade tem muito a ver com o espetáculo, com o show business, porque para VIR a ser, precisa agradar a seu público, é preciso de aplausos, precisa da correspondência e da confirmação da platéia dos outros homens. Que lugar mais propício para isso do que um ambiente homossocial masculino como a indústria de quadrinhos de super-heróis?
Quando falo que a indústria dos quadrinhos de super-heróis é um espaço homossocial e até mesmo homoafetivo masculino, não quero dizer que se relaciona com a cultura homossexual (isso é tema para um outro dia). Quero dizer que é uma esfera onde os iguais se relacionam, daí o prefixo homo, como em homogêneo. Homossocial é quem socializa num espaço entre iguais, como no futebol ou nas forças armadas no caso brasileiro e masculino. Homoafetivo são aqueles que compartilham dos mesmos afetos, ou seja, dos mesmos gostos, dos mesmos pendores, como nas convenções de fãs. Explicado isso, preciso demonstrar como a indústria dos super-heróis é voltada para o público masculino, algo que parece um tanto óbvio.
Desde o início desses quadrinhos, seus anúncios foram voltados para um público juvenil masculino, sejam os brinquedos anunciados nessas revistas (arminhas, hominhos, carrinhos), ou até mesmo vestuários (eu lembro de anúncios de cueca para meninos nos gibis). Outro fato que privilegia a indústria dos quadrinhos de super-heróis para o público masculino são as fantasias que eles vendem. Mas não é da máscara do Batman que estou falando. Falo das fantasias de poder, de um corpo que tudo pode, sem limites, e a possibilidade de impor a ordem através da medida que nós mesmos queremos estabelecer.
Também temos a quase ausência da representação feminina nessas fantasias de poder. Poucas vezes é permitido que as mulheres tenham protagonismo nessas narrativas. As recatadas e domésticas Princesas são oferecidas para as meninas, limitando-as ao espaço interno, do lar. Aos meninos, os super-heróis cumprem o papel de suas brincadeiras, eles são destinados ao mundo externo, àquilo que rompe os limites, que é super. Nos quadrinhos dos Estados Unidos tudo isso se mistura quando são vendidos nessas publicações métodos de bodybuilding, como o famoso anúncio de Charles Atlas que inspirou o personagem Flex Mentallo. Não por acaso enxergamos um reflexo desses corpos anabolizados também em desenhistas da indústria de quadrinhos, que trabalham seus próprios corpos musculosos, como John Romita Jr. (Homem-Aranha), Mike Deodato Jr. (Vingadores), Jorge Jiménez (Batman) e Phil Jimenez (Mulher-Maravilha), como alguns exemplos.
Num mundo tão feito pra eles, tão hipermasculino, tão hiperviril, ainda temos pessoas que se revelam com o desejo de ser mulheres dentro desse ambiente. Ainda que tenhamos nomes como Rachel Pollack e mais recentemente Magdalene Visaggio (Garota Eternidade), Nicole Moines (Esquadrão Suicida, Sexteto Secreto) e Charlie Jane Anders (Novos Mutantes) se destacando, elas chegaram a essa indústria já transicionadas, abrindo o caminho a foice (e com tochas e forcados logo atrás). Uma saudação a elas. Mas precisamos fazer uma saudação ainda maior para aquelas que, dentro da misógina indústria de quadrinhos de super-heróis, fizeram a sua transição de homem para mulher.
Abro um parêntese aqui para que não me questionem sobre isso depois. No Brasil, claro, temos a heroína Laerte, que também enfrentou muito machismo e transfobia e, ainda assim, mais de uma década depois de sua transição, existem pessoas que ainda a chamam de “o” Laerte. Pessoas que, obviamente, não tem nenhuma questão de gênero pairando ao redor delas, porque isso não é importante na sua vida. Mas esse texto aqui não é sobre o Brasil e nem sobre pessoas insensíveis a questões de gênero, é sobre um espaço específico que acompanho desde os meus dez anos de idade - a indústria dos quadrinhos de super-heróis - e que tem muito a ver com a formação da minha identidade e como eu encaro o gênero hoje em dia (mas isso fica pra outra hora também). Fecho o parêntese aqui.
Eu gostaria de pedir, não uma salva de palmas, mas que os leitores aqui prestassem mais atenção nos trabalhos das mulheres que transacionaram dentro da indústria tóxica, hierárquica e hegemônica dos quadrinhos de super-heróis. Em primeiro lugar, temos Lilah Sturges, cujo nome-morto era Matthew Sturges, que em 2016 anunciou o início de sua transição no Twitter. Lilah foi uma colaboradora recorrente do criador de Fábulas, Bill Willingham (que é famoso por declarações homofóbicas) e escreveu a série Para Sempre, no universo de Fábulas. Trabalhos de Lilah que recomendo a leitura são a minissérie da DC Comics, Planeta dos Condenados e mais fortemente ainda a série da Vertigo, Casa dos Mistérios, que saiu aqui no Brasil no mix da revista Vertigo, da Panini Comics. Ela também escreveu fases do Pacto das Sombras, do Besouro Azul e do Gladiador Dourado que são inéditas no Brasil.
Para os que estão mais atentos às histórias em quadrinhos de super-heróis atuais, devem ter se deparado alguma vez com o nome Jan Bazaldúa. Seu nome figura em diversos quadrinhos da Marvel na última década, com uma produção artística intensa (o Marvel Database mapeou mais de 80 trabalhos seus em arte interna desde 2017). A primeira vez que o trabalho de Jan chamou a minha atenção foi quando ainda assinava Óscar Bazaldúa, nas páginas de Miles Morales escritas por Brian Michael Bendis. Em 2020, Janeth, que é mexicana, anunciou sua transição nas redes sociais. Outros trabalhos que Jan que recomendo são as séries Sr. e Sra. X, Legião de X, Loki: O Deus que Caiu na Terra e Duende Vermelho. Atualmente é a desenhista regular de O Imortal Thor, escrito por Al Ewing. Em 2025, Jan Bazaldúa foi finalista do Prêmio GLAAD (Gay and Lesbians Association Against Defamation) por seu trabalho na série da Capitã Marvel, que permanece inédita no Brasil.
Por fim, preciso falar de Jenny Blake Isabella, um nome importantíssimo na representação e na representatividade dos quadrinhos, embora por esse nome, nem mesmo os leitores da época de guaraná com rolha e dos Heróis Shell vão saber a quem me refiro. A pessoa antes conhecida como Tony Isabella foi às suas redes assumir sua transição de gênero recentemente, em fevereiro de 2025, assumindo o nome social de Jenny Blake Isabella. Como Tony, Isabella foi responsável pela criação de dois personagens negros pioneiros nos quadrinhos: o Raio Negro (Jefferson Price), na DC Comics, o primeiro super-herói negro da editora, criado em 1977; e o Golias Negro (Bill Foster), pela Marvel, em 1975. Raio Negro teve, de 2018 a 2021, uma série de televisão própria no canal CW. Isabella trabalhou tanto como editora da Marvel como da DC Comics e foi responsável por escrever títulos como o do Motoqueiro Fantasma (Johnny Blaze) e os de Luke Cage. Também criou a Tigresa, Misty Knight e Os Campeões (de Los Angeles) para a Marvel nos anos 1970. Jenny agora será creditada tanto como seu nome atual como o nome-morto, em honra aos seus trabalhos passados.
Uma notícia do site inglês Bleeding Cool, diz que Jenny declarou em suas redes sociais que seu próximo intento na indústria dos super-heróis é o de criar uma personagens trans nos moldes de Peter Parker. Isso obviamente não quer dizer que o Homem-Aranha é trans, mas que ela irá se orientar pelo arco de apresentação de Peter Parker: uma pessoa jovem que precisa lidar com as transformações do seu cotidiano por ter se tornado algo mais que as outras pessoas talvez nem suspeitam. Isabella irá usar essas prerrogativas para criar sua super-heroína trans e trazer mais representatividade para os quadrinhos. Sua intenção é inspirar crianças queer e heterossexuais para fazer deste um mundo mais igualitário.
Fora a notícia do Bleeding Cool, um site que abraça a diversidade, não houve nenhum espaço da gibisfera ou da machosfera falando sobre esse assunto. Representatividade trans pouco importa em uma época em que Trumps, Zukerbergses, Bezoses e Musks estão na ordem do dia. Nessa “nova ordem estadunidense a.k.a. mundial” a memória das pessoas trans são apagadas de registros públicos, os nomes sociais não são mais levados a sério, as cirurgias de correção de sexo são desincentivadas para não dizer proibidas, pessoas trans são banidas das Forças Armadas, entre outros direitos conquistados aos poucos e com extremo esforço. Talvez assustada com essas manobras de retrocesso, Isabella resolveu se assumir enquanto ainda podia.
Jenny, assim como Lilah e Jan construíram primeiro uma carreira respeitável na indústria masculina dos comics para depois, então, poderem se assumir. Todas elas somente “saíram do armário” da identidade de gênero depois dos seus quarenta anos de idade. Lilah aos 46, Jan aos 53 e Jenny aos 73. Precisaram ficar maduras para tomar essa importante e corajosa decisão. Tudo isso em meio a escândalos de abusos feitos por homens cis, e invariavelmente brancos, dentro da indústria dos comics de super-heróis, que começaram a ser noticiados mais efusivamente em meados da década de 2015.
Esses escândalos chegaram a um ponto incontornável com as denúncias feitas a Neil Gaiman de estupro e tráfico de pessoas no início de 2025. Talvez, essas mulheres que transicionaram dentro da indústria dos comics se depararam ao longo da vida e da profissão com colegas homofóbicos, com pessoas que trabalharam ao lado que abusam de mulheres, lidaram com uma política falocêntrica, radical e extremista dentro de suas editorias e no país onde labutam. Talvez essas pessoas antes conhecidas como homens resolveram romper com o pacto masculino que concorda e valida esse tipo de atitude que desabona e desautoriza pessoas que se aproximam do feminino. Talvez por isso, nenhuma delas mais conseguia enxergar a si mesma como um homem, não conseguia se identificar com isso, uma vez que ser homem parece representar todo esse tipo de absurdo inumano. A alternativa, por mais dolorosa, difícil e complicada que seja, é melhor que ser um monstro.
Não é todo homem, mas sempre um homem. Tudo isso acontece por causa da forma como a masculinidade é trabalhada, como algo que um homem deve oferecer para satisfazer (e obviamente acalmar e tranquilizar) outros homens da “contaminação” da feminilidade. O homem faz guerras, violenta, estupra e mata para mostrar quem está no controle, um controle que, como estamos vendo com Trump, não se sacia nunca e busca uma expansão para Groenlândias, Canadás e Golfos da América. Porque se provar homem é uma missão para soldados que nunca dormem na sua vigilância masculina, uma tarefa inglória que exige a gloriosa aprovação de Musks, Bezoses e Zukerbergses, de uma multidão viril que nunca acaba. Se tornar mulher é muito mais recompensador. Somente fazendo as pazes com a feminilidade é que a masculinidade pode finalmente pendurar sua capa de super-herói e se tornar humano por um tempo.
Como eu sempre digo: abram seus miolos!
Até o final de semana com nossa programação normal!
=)
Ótimo texto.....