Quando os super-heróis fazem sexo? Um mês atrás eu escrevi sobre como a infância está intrinsecamente relacionada com os quadrinhos através de um preconceito desenvolvido num acordo entre imaginário social e crença na inferioridade e marginalização de uma mídia. Esse acordo também se relaciona com a pergunta “quando os super-heróis fazem sexo?”. A resposta, obviamente, é “entre os quadros de uma história em quadrinhos”, mas que gera uma outra pergunta. “Por que a relação sexual entre os super-heróis não é mostrada numa história em quadrinhos?”. Diria o psicanalista Jacques Lacan que a relação sexual não existe, porque ele acredita que é impossível que num intercurso sexual exista uma ressonância, uma completude perfeita entre duas pessoas. Por isso, não há uma relação, mas um ato, em que alguns saem ganhando mais que outros.
No que tange aos super-heróis, temos uma outra impossibilidade: a de retratar personagens nus e praticando sexo em uma mídia em que existe o mito de que é feita para crianças. Em uma pesquisa que realizei recentemente com meu supervisor de pós-doutorado revelou que o consumidor médio de gibis de super-heróis no Brasil não é criança, mas um adulto branco entre 21 e 41 anos, com pós-graduação e que recebe entre 2 e 5 salários mínimos. Esse público não mudou muito desde a Segunda Guerra Mundial, quando eram publicados quadrinhos para melhorar a moral dos soldados no front. Mais que isso, muitos desses gibis, que não eram de super-heróis, eram como se fossem quadrinhos de educação sexual, usados para levantar outra moral. Serviam também para exercer uma pedagogia cisheteronormativa que separava o que era considerado sexo bom do sexo ruim, conforme aponta a feminista lésbica Gayle Rubin.
O que acentuou a perseguição aos quadrinhos e a mística de que eles deveriam ser voltados para as crianças foram as próprias campanhas de difamação, que aconteceram em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil. Nos Estados Unidos essas campanhas foram atiçadas pela publicação do livro A Sedução do Inocente, do psiquiatra Fredric Wertham. O conteúdo reacionário do livro fez com que fosse criado o Código dos Quadrinhos nos Estados Unidos, que restringiu diversos conteúdos nas histórias em quadrinhos, inclusive a exibição de nus e de atos sexuais. No Brasil não existiu algo exatamente semelhante, mas vale lembrar que boa parte dos quadrinhos que já foram publicados no Brasil vinha de outros países, principalmente dos Estados Unidos, e principalmente os de super-heróis.
Maurice Horn expõe que o super-herói é um fenômeno estadunidense peculiar que não encontra a mesma adesão entre os europeus, porque a resolução de problemas através de poderes extraordinários e força bruta lhes parece algo incivilizado e infantil. O que poderia denotar também um medo infantil do sexo seja para os fãs das histórias como para os personagens que nelas estão inseridos, uma vez que as relações sexuais são sublimadas nessas tramas.
Por outro lado, também poderiamos dizer que esse medo de discutir o sexo em mídias mais populares (até porque a pornografia e não a discussão reflexiva sobre o sexo sempre foi relegada às classes populares, como aponta Jorge Leite Junior) também está ligado a uma elitização do saber sobre o sexo. Negar a reflexão sobre o sexo e a sexualidade, a crítica às formas comuns de se relacionar intimamente, também facilita a manipulação do povo. Quanto menos controle e esclarecimento as pessoas tiverem sobre suas vidas e, por conseguinte, a maneira como lidam com o sexo, mais fáceis de serem vigiadas e punidas pelas consequências de seus atos (sexuais). Existe até mesmo um medo generalizado da recusa ao sexo, que é patologizado. Quanto menos saber na massa, mais poder para as elites e isso corresponde ao que entendemos por sexo e sexualidade.
O sexo é, sim, polítíco. Por isso tanto medo dos poderosos das feministas ou das pessoas consideradas desviantes sexuais, porque elas colocam as certezas sobre o sexo em discussão, em pauta pública. Essa é uma das razões por que não se discute quando, como, onde e por que os super-heróis fazem sexo, não necessariamente porque os quadrinhos e suas outras narrativas seriam ordenadas para crianças, mas porque são massivas e populares. Talvez seja a mesma lógica de se temer um beijo gay em uma telenovela.
O poeta medieval Giovanni Boccaccio foi um dos desafiantes da moral e dos bons costume da época em que se queimaram bruxas (quando se encontrava um clitóris em uma mulher, por exemplo) falava sobre as ninfas o que poderíamos falar dos super-heróis: “é verdade que são todas mulheres, mas não mijam”. Ou seja, sim, esses personagens são do gênero que são, mas lhe falta o sexo, ou seja, o órgão que os fará seres sexuais existe numa ausência, porque ele nunca é mostrado. Apenas supõe-se que ele exista. Essa suposição gera o que a crítica de arte Susan Sontag chamou de “imaginação pornográfica”, que faz imaginarmos como são os órgão sexuais dos super-heróis e das super-heróinas e quando, como, onde e por que fazem sexo.
Mas voltando às ninfas, que aqui podemos entender os super-heróis como ninfas e assim eles serão tratados ao longo deste texto, temos pelo menos duas palavras relacionadas ao sexo que se referem a elas: ninfetas e ninfomaníacas. Enquanto as ninfetas são meninas vorazes sexualmente mas pouco experienciadas, as ninfomaníacas são mulheres devoradoras de homens em quantidade. Ninfas também são os nomes dos pequenos lábios da vulva de uma mulher. No mundo dos super-heróis, Ninfa é o codinome de Kitty Pryde, apresentada pela primeira vez aos 13 anos, uma ninfeta, cujos poderes é não poder ser tocada por ninguém e atravessa toda matéria sólida que encontra. Isso ajuda a entender a próxima ideia que lançarei.
Catherine Malabou adiciona a essa interpretação de que como a ninfa não possui órgão sexual, não mija, não goza, não traz o mistério da mística feminina, que pode ser a revelação do que desejam, se torna a fantasia sexual por excelência. A ninfa não é matéria, ela é etérea, ela é apenas imagem. Assim como os super-heróis são apenas imagem e, ato contínuo, a fantasia sexual por excelência. A ninfa e o super-herói são moldes que devem se adaptar ao seu criador, como a estátua de Galatéia serve a Pigmalião. Não são imagens de um corpo, mas um corpo em imagem como coloca Giorgio Agamben em seu ensaio Ninfas. Para se tornarem vivos, as ninfas e os super-heróis devem se encontrar com o ser humano, aquele que vai reavivar essas imagens através de suas fantasias (sexuais ou não).
Uma das funções das narrativas dos super-heróis, conscientemente ou não, é promover um apagamento das diferenças de gênero. Essas narrativas são androcêntricas, privilegiando a ação e não o sentimento ou o diálogo dos homens. Elas reforçam a ideia que de sexo não se fala, se pratica, e que a reflexão é algo menor, relegado à ordem do feminino. Por outro lado, a ação, a prática, a eficácia e a produção, os feitos super-heróicos, mesmo os feitos sexuais super-heróicos alardeados pelos homens, são da ordem masculina. A mulher deve se relegar ao interior, ao seu próprio mistério, enquanto o homem deve se alimentar dos feitos de outros homens para buscar, incessantemente, superá-los. Essa talvez seja uma das razões porque as mulheres não se interessam tanto por essas narrativas. Talvez elas não estejam tão interessadas em superar umas às outras através de seus feitos, mas àquilo que podem acrescentar aos feitos das outras.
Outra função das narrativas de super-heróis, como aponta a pesquisadora feminista de quadrinhos Dani Marino, é a de promover o mito da universalidade. Ou seja, espalhar a ideia errada de que essas histórias representam os sonhos, aspirações, vontades, desejos e realidades de toda humanidade. Na verdade elas trazem mesmo é um recorte do homem branco, jovem, com certo conforto financeiro, protestante, estadunidense, e de escolaridade alta, o mesmo que domina as principais narrativas e discursos desde o início da criação do patriarcado como apontam as arqueólogas Gerda Lerner e Riane Eisler.
“Um dos devaneios em que o homem se compraz”, escreveu Simone De Beauvoir sobre o uso da inspiração das musas pelo ser masculino, “é o da impregnação das coisas pela sua vontade, da moldagem das formas, da penetração da subsistência delas”. Mas o mesmo pode ser pensado dos super-heróis, como uma pasta, um molde, que serve a diversos propósitos, inclusive, sim, de ser usado para o erótico e para o pornográfico. Sejam eles super-heróis homens ou super-heroínas mulheres, todos têm sua versão pornô. Todos eles têm miríades de formas pelo multiverso da loucura em que seus criadores e manipuladores os colocaram. Eles só não mijam. Eles só não gozam. Porque não lhe é permitido ter a vida biológica que nós temos e que, para muitas pessoas é resumida a nossas genitálias.
Como a analogia de Beauvoir faz das musas, elas e os super-heróis são capazes de abrir as portas para o mundo suprarreal, para o superhumano, mas não são capazes de concebê-lo. Às musas, às ninfas e aos super-heróis é negado o prazer, até mesmo porque o prazer que eles nos concedem, em nossas fantasias (genitais ou não) também são irreais. A relação sexual, filosoficamente, entre super-humano e humano não existe também, porque um não é capaz de conferir ao outro o que lhe falta: o epônimo que concede a natureza superhumana e a vida que, além de criar a vida, pode permitir o gozo.
No entanto, esse tipo de relação parece mais realizável do que aquela entre dois super-heróis (do gênero que você desejar) seja palpável numa folha de papel ou numa tela digital. O problema de não termos atos sexuais nos quadrinhos e na grande maioria das narrativas de super-heróis (em que The Boys seja uma exceção, mas que se permite tocar nestes assunto pelo meio da sátira e da paródia) tem a ver mesmo, como expus antes, com quem decide o que mostrar num quadrinho. Não é por acaso que os quadrinhos undergrounds vem por anos mostrando tudo quanto é tipo de criatura imaginal cometendo o sexo bom, o sexo mau, o sexo mais ou menos e aquele que a gente mal sente, desde que as Tijuanas Bibles surgiram.
Porém, os principais super-heróis que conhecemos existem sob a chancela de grandes conglomerados do entretenimento e um entretenimento para todas as idades vende mais que o entretenimento só para adultos. Talvez isso comece a mudar em poucos anos quando Superman, Batman, Mulher-Maravilha e Capitão América cairem em domínio público. Até então nossa imaginação pornográfica, os poderes que regem o universo e a ordem natural das coisas, terão de se contentar com o sexo entre super-heróis que acontece entre as cenas de um quadrinho ou de um audiovisual. O corte, a cisão, como a própria origem da palavra sexo.
Para os que tiverem curiosidade em saber sobre como é o sexo do Superman, recomendo o ensaio “Man of steel, woman of kleenex”, de Larry Niven, ilustrado por Curt Swan, que inspirou obras como Watchmen, por exemplo e pode ser acessado aqui.