EDIÇÃO EXTRA: O caso João Vicente e a infantilidade dos quadrinhos
“O homem que tem tudo não tem nada”.
Enquanto eu estava na PocCon semana passada, aconteceram muitas coisas no mundo: inundação novamente na minha cidade, Porto Alegre, os Estados Unidos bombardearam o Irã. Todas coisas muito sérias, de adultos sérios. Mas o que tange aqui a esse espaço de adultos graciosos como eu, você e o João Vicente de Castro, foi a declaração que ele fez recentemente sobre a cultura geek e nerd. Em uma entrevista para Gregório Duvivier no canal Porta dos Fundos, ele diz, categórico: “não tem nada que me irrite mais do que adulto infantil, adulto que tem boneco, que lê gibi e curte essas ‘coisas niponica’ (sic)” e continua “me parece que já passou da hora, que está nadando atrás de um cruzeiro que já se foi”. Como a Thais Hern falou, no canal AfroNerd, se essa manifestação foi em razão de hate real ou se foi pra gerar comentários raivosos no perfil do Porta dos Fundos, não sabemos, mas certamente chamou a atenção da nossa amada e odiada gibisfera.
Mas se você chegou agora no universo das subcelebridades brasileiras e não sabe quem é João Vicente de Castro, eu te conto. Ele é um ator de 42 anos, sudestino, vem de uma linhagem de jornalistas que remonta ao seu avô Múcio, fundador do jornal O Nacional de Passo Fundo e seu pai, Tarso de Castro, um dos fundadores do jornal de humor O Pasquim. Esta última publicação era a vanguarda da imprensa contra a ditadura, tendo em suas fileiras quadrinistas de destaque da época como Jaguar, Ziraldo, Millôr Fernandes entre outros grandes nomes do humor gráfico e dos quadrinhos brasileiros. A declaração de João Vicente teria um fundo edipiano? Talvez. Já que depois da morte do pai, quando o rapaz tinha 8 anos, ele passou a morar com os padrinhos Caetano Veloso e Paula Lavigne. Depois, foi morar em Nova York aos 13 anos.
Nesse sentido, João Vicente é um brasileiro privilegiado, e provavelmente não teve contato com quadrinhos na sua infância, porque esse é um meio marginal e desprezado pelas elites, mesmo que Caetano tenha feito diversas músicas que falassem de gibis. Em suma, teve uma vida de regalias, e em 2012 fundou a produtora de esquetes de humor Porta dos Fundos. Um dos sócios da produtora, Ian SBF, é o criador da Sociedade da Virtude, sátira animada dos super-heróis, que criou com o quadrinista e animador Thobias Daneluz. Em 2014, integrou o elenco da série Lili, a Ex, baseada na série de quadrinhos do cartunista Caco Galhardo.
Em 2025, participou da competição da Amazon Prime, L.O.L.: Ria se for capaz, em que os participantes do Porta dos Fundos se enfrentavam, sem poder rir um dos outros. Nesta competição, seus colegas o tacharam como o sócio da produtora que é o mais rico e o mais sem graça de todos. Os gibis desprezados por João Vicente permeiam a sua vida por todos os lados, o que leva a crer que ou ele é muito ignorante, ou é muito inocente, ou é muito mau-caráter, para fazer uma declaração dessas. Ou a melhor hipótese: faz tudo pela audiência, como já dizia o título do programa encabeçado por seu colega Fábio Porchat e a atriz Tatá Werneck.
João Vicente só engrossa o coro das pessoas que infantilizam os quadrinhos e a cultura nerd. Daqueles que perseguiam os quadrinistas na ditadura, das mães que queimavam os gibis dos filhos na fogueira, dos religiosos que dizem que é coisa do demônio. Faz um desserviço inclusive para ele, já que o humor que ele faz está permeado de referências a essa cultura, já que humor, quadrinhos e imprensa tem uma raiz em comum. Não por acaso, nos Estados Unidos, os quadrinhos se chamam comics e surgiram nos jornais.
Mas tudo bem, o que importa aqui para nós é colocar em discussão essa forma de transformar os quadrinhos em algo derrogatório. Pensar em como eles se ligam à infância e porque isso acontece. Eu sei que muitas pessoas melhores que eu e com muito mais estudo nessas áreas já se debruçaram sobre o tema e trouxeram teses incríveis. Mas eu vou dar aqui meus cinquenta centavos sobre o assunto e surfar na onda do JV, usando o feitiço contra o feiticeiro.

Classificar algo como anormal, abjeto ou infantil, é um atestado de que a pessoa não tem conhecimento daquilo que assim estabelece. Pior que isso, significa que não se tem controle sobre aquilo nomeado dessa maneira. A própria psicanálise fala que nomeamos as coisas como um ritual para estabelecermos contato e domínio sobre elas. Como coloca Julia Kristeva, o abjeto é aquilo que nos causa terror, que se encontra entre duas coisas, algo que não conseguimos entender, ou captar, ou ainda, suportar. Essa é a mesma relação que as pessoas heteronormativas estabelecem muitas vezes com aquilo que é relacionado com o queer. As relações geek e nerd tem muita proximidade com o queer, como já falei neste texto.
Além disso, classificar as coisas como esquisitas (queer), como abjetas, como anormais, também é uma forma de se assumir que se tem medo delas ou de suas consequências. A imposição do medo, por sua vez, como num discurso que inverte os pólos, que propõe desqualificar aquilo que nos causa medo, é a repressão. Michel Foucault chama isso de “práticas de marginalização”, que é a forma como o poder é exercido sobre os loucos, os doentes, os criminosos, os desviantes, os pobres e sobre a categoria humana que é mais dominada e controlada por todas as outras: as crianças. Por isso, classificar algo de infantil é reduzir isso a algo instintivo, do id, incontrolável e, que, portanto, para ser controlado e domesticado deve ser excluído, recusado, desqualificado, quase como uma espécie de recalque. Se eu não puder, então vou desdenhar.
A repressão da infância, da criança interna, tem a ver com a disciplina dos corpos, tão preconizada por Foucault. Não existem corpos mais disciplinados, educados, conduzidos, manipulados, controlados do que os das crianças. Portanto, acusar alguém de infantil significa chamá-lo de menos que um ser humano. É compará-la a uma categoria humana que precisa de amparo e que não tem autonomia, algo semelhante a todas as categorias citadas acima tidas como anormais. Porque se esses limites forem rompidos, a sociedade cai na libertinagem de um Carnaval eterno ou, pior, de um show de comédia stand-up eterno. Por isso, se legisla sobre esses corpos e sobre os corpos das crianças, por isso, se patologiza essas existências, ou também as envolve nas esferas do pecado e da tentação.
A dualidade infantil/adulto tem a ver com o estabelecimento de uma normatização, em que a norma desenvolve normas de conduta para cada idade, ela impõe uma ordem que não deve ser quebrada sem que alguém pague as consequências dessa infração. Podendo pagar como crime, como doença ou como pecado. A norma se opõe ao desconhecido, ela quer aquilo que é tido como garantido, como numa luta contra o sentimento de morte, que se aproxima através do perigo que o anormal revela.
Foucault ainda chama a atenção para a utilidade e a docilidade dos corpos. A sociedade não aceita rebeldes, crianças são rebeldes. A sociedade expele o que não é útil. Crianças não produzem nada, não são úteis. Ser infantil é ruim para a sociedade. Ser infantil não causa burnout. O adulto faz parte de uma engrenagem, de um sistema que o dilacera, a criança vive livre no caos que é o seu próprio mundo, antes de fazer parte de uma esfera social, que vai educá-la para ser servil. Se há algo para o qual a criança é útil é para a composição e manutenção da família e para os discursos que colocam a criança como o elo frágil dessa corrente, quando se quer culpabilizá-la de algo que vem da ordem dos adultos e dos perigos que eles representam para as crianças. Como o acesso delas a alguns conteúdos “adultos” na internet, inclusive o Porta dos Fundos.
Para finalizar, uma hipótese da razão pela qual algumas pessoas tendem a infantilizar os quadrinhos e os elementos relacionados com ele. Para isso invoco outro filósofo, Giorgio Agamben, que diz que infância (in-fância) é o momento da vida em que ainda não somos falantes, que não aprendemos ainda todas as nuances e possibilidades da linguagem. É na infância que a adquirimos e tomamos, através dela, controle do mundo e da vida. É na infância que nós apreendemos a linguagem escrita e pictórica através da leitura dos quadrinhos, numa fase de aprendizado do mundo adulto que, em algum momento, faremos parte. Por isso, talvez, os quadrinhos foram tão fixados à infância, porque são os primeiros intermediários (mídias) entre o nosso e o mundo, entre o próprio e o alheio.
Mas Agamben também afirma que nunca conseguiremos dar conta de toda(s) a(s) linguagem(s), e que a nossa infância nunca é eliminada, porque estamos sempre aprendendo. Talvez a pessoa que se considere adulta demais acredite que já aprendeu o suficiente e que já está pleno e satisfeito com o mundo que tem, e não precisa de mais nada, como na história “Para o homem que tinha tudo”, uma das mais aclamadas histórias do Superman.
“O homem que tem tudo não tem nada”, diz a frase original que inspirou o criador Alan Moore. Essa frase denota uma falta de propósito, a ausência de relacionamentos significativos, que a pessoa não sabe o que quer ou deseja, alguém que tem foco na validação externa e que as coisas materiais, para ela, são voláteis. Tudo que uma análise do discurso do nosso ator comediante poderia supor. Assim como o Superman, João Vicente é branco, cis-heterossexual, rico, na idade jovem adulta, bonito, famoso, o supra-sumo do privilégio social, ele é um “homem que tem tudo”. Contudo, o “homem que tem tudo”, em seu arquétipo, é servil exatamente a isso: à sua própria percepção de um mundo que está tão cômodo e cristalizado que ele é incapaz de olhar para fora de sua janela de realidade e aceitar ou lutar pelo que é diferente.
Amei. Sou uma adulta infantilizada, segundo João Vicente. Graças a Deus. Aliás, não só ele, mas o senhor Duvivier e até Fábio Porchat têm a mania de rotular pessoas, de cultura nerd a politica. Gosta de gibi? Infantilizado. Não gosta do Lula? Extrema direita. E por aí vai. E seus lugares de fala são tão arrogantes, como se estivessem acima da sociedade. Pseudo filósofos modernos. Affffff… que preguiça. Lembro que vi essa cena do bate-papo em que ele zomba de quem gosta das “nipo-coisas” e senti um imenso mal estar. Agora, sabendo de onde ele vem, quem é sua família, só consigo pensar o quanto ele foi imbecil com sua própria história. Daqui a pouco vem retratação on-line e vitimismo.
Gostei da análise!